O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e o ministro do STF Alexandre de Moraes participam da cerimônia de entrega da Ordem do Mérito do Tribunal Superior Eleitoral, em Brasília, em março de 2023| Foto: EFE/ André Borges.
Porto Velho, RO - Especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo rejeitam a classificação do Brasil como uma “ditadura” (tese defendida por deputados de oposição e por 94% dos manifestantes do ato pró-Bolsonaro de 25 de janeiro, conforme levantamento da USP), mas apontam uma deterioração da liberdade de expressão no país e reconhecem a existência de paralelos entre a censura do STF nas redes sociais durante os últimos anos e a censura feita na ditadura militar brasileira.
É o caso do advogado e professor Rodrigo Marinho, autor da obra 'A história do Brasil pelas suas constituições'. Fazendo referência à expressão “ditadura do Judiciário” (que, para quase metade dos brasileiros, descreve o país), ele prefere falar em “disfunção do Judiciário”. Cita, em particular, os diversos inquéritos concentrados no ministro do STF Alexandre de Moraes.
As ordens de censura expedidas nesses inquéritos renderam ao ministro a qualificação de “ditador” pelo empresário Elon Musk, dono da rede social X (antigo Twitter), uma das destinatárias das ordens.
Para Marinho, o principal fator que contraria o rótulo empregado por Musk é a separação de poderes: Moraes, de quem emanam as ordens, faz parte do Poder Judiciário, de modo que faltaria a ele o “monopólio da força”, que seria, em qualquer caso, necessário para a configuração de um ditador. Para executar suas decisões, por exemplo, Moraes depende do Poder Executivo — no caso, a Polícia Federal.
Marinho contrasta essa situação com a da ditadura militar brasileira, onde, diz, havia um “autogoverno” do Executivo, que tanto ordenava a censura quanto a executava. Assim, descarta a caracterização do Brasil atual com uma “ditadura”, embora faça uma concessão em favor dos que usam a palavra: “Para quem sofre, parece muito.”
A própria ministra Carmen Lúcia, do STF, em sessão do TSE em 2022 sobre a censura de documentário do Brasil Paralelo, fez comparação implícita da medida com as que eram praticadas na ditadura, ao se dizer preocupada com os riscos da medida e alertar: “Não se pode permitir a volta de censura sob qualquer argumento no Brasil.”
Monitoramento de conteúdos
Nos últimos anos, o TSE criou órgãos especiais para “monitorar a circulação de práticas de desinformação”, que têm encaminhado para o ministro Alexandre de Moraes vídeos e outras postagens de criadores de conteúdo na internet. Esse tipo de monitoramento tem resultado, frequentemente, na censura de conteúdos, na proibição de que os criadores voltem a tocar em determinados assuntos vagamente estipulados, ou até mesmo do bloqueio total dos perfis desses indivíduos no território nacional; ações essas realizadas de ofício pelo ministro, sem pedido de órgãos de acusação.
Como exemplo de sua afirmação de que a censura atual pode se parecer com a da ditadura aos olhos de quem a sofre, Marinho compara esses órgãos do TSE a antigos órgãos como o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), que, no regime militar, monitoravam espetáculos e outras produções culturais. O objetivo era detectar conteúdos considerados problemáticos, seja pelo conteúdo político, seja por afrontarem a moral e os bons costumes.
O professor considera que esse tipo de monitoramento seria ilegal da parte de um órgão do Judiciário, porque violaria o princípio da inércia da jurisdição, que impede o Judiciário de agir sem ser provocado.
Censura prévia
Marinho chega a afirmar que, em alguns aspectos específicos, chega a haver maior amplitude, hoje, na atuação das autoridades em comparação com o período militar. Como exemplo, ele aponta para a técnica, frequentemente adotada pelo ministro Moraes, de bloquear perfis em rede social, de modo a impedir qualquer manifestação futura do indivíduo, em vez de censurar conteúdos especificamente infringentes. Marinho explica que esse expediente é conhecido como “censura de meio” e era rejeitado pelo próprio STF na ditadura militar, que não o empregava; por exemplo, afirma Marinho, não se praticava o fechamento de veículos.
O advogado explica, contudo, que o regime praticava outra forma de censura prévia, ausente no Brasil de hoje, que era a interferência interna nas editorias de veículos: agentes do Estado examinavam previamente os conteúdos e vetavam a publicação de alguns deles, ou de partes específicas.
Clandestinidade
O historiador Enio Viterbo, especialista em direito militar e história política do Exército brasileiro, traça paralelos entre os ofícios sigilosos de censura às redes sociais no Brasil, criticados por Musk e revelados pelo Congresso americano, e circulares sigilosas que eram enviadas por agentes do regime militar aos veículos de imprensa, proibindo a veiculação de qualquer conteúdo futuro sobre determinado assunto ou indivíduo.
Para Viterbo, a semelhança reside no fato de que, assim como ocorre com os atuais ofícios de censura, as circulares do tipo não continham fundamentação, as empresas destinatárias eram proibidas de divulgar o seu conteúdo e os eventuais indivíduos afetados (por exemplo, autores cujo livro era proibido de ser mencionado) não tinham qualquer acesso à ordem, aos seus fundamentos ou à informação de quem a tinha expedido, muito menos tinham a possibilidade de se defender.
A censura específica feita dentro dos veículos (empregada, segundo Viterbo, quando as circulares se mostravam insuficientes) também era feita com imposição de sigilo: os veículos eram proibidos de informar o público da ocorrência de censura. Essa proibição explica a prática, tornada célebre, da substituição dos trechos censurados nos jornais por receitas de bolo.
O empresário Elon Musk afirmou, em publicação no X, ter ocorrido prática análoga com a rede social, com suposta exigência de que a censura de perfis, feita por ordem sigilosa, fosse apresentada ao público como tendo sido feita espontaneamente pelo X, e não por ordem judicial. O empresário não esclareceu se estava falando de uma interpretação específica da redação dos ofícios de censura já tornados públicos ou se se referia a comunicação à parte, ainda não conhecida do público.
Cerceamento das possibilidades de defesa
Os especialistas consultados concordam que um aspecto em comum entre o cenário atual do Brasil e a ditadura militar é uma restrição das possibilidades de defesa, no caso de crimes cometidos por indivíduos tachados de “subversivos”, considerados como ameaça à ordem política vigente.
No caso da ditadura militar, esse cerceamento ocorreu diretamente, com a previsão constitucional de que certos atos de repressão política estariam “excluídos de apreciação judicial”, ou seja, não haveria possibilidade de recurso ao Judiciário para reverter os atos.
Além disso, os chamados “crimes contra a segurança nacional” foram retirados da Justiça comum, sendo atribuídos à Justiça Militar. Enio Viterbo considera essa modificação de competência como tendo sido um instrumento para “combater inimigos políticos”, pela quase garantia de uma futura condenação. Por esse motivo, a designação de tribunais especiais para certos crimes (ou mesmo um “tribunal de exceção”, vedado pela Constituição de 1988) é estratégia frequentemente usada por regimes autoritários. Getúlio Vargas, por exemplo, criou um “Tribunal de Segurança Nacional”.
Já no Brasil atual, o mesmo efeito prático tem sido obtido pela aplicação de regras já antigas. O instituto processual da “conexão” (atração de processos para determinado julgador, em razão do tema) tem sido invocado para remeter diretamente ao STF muitos investigados ou réus sem foro natural no tribunal, onde ficam privados do direito de recorrer a qualquer outro órgão judicial, já que se trata do órgão de cúpula.
Neste aspecto, aponta Rodrigo Marinho, a situação dos réus pode ser pior do que a de muitos réus na própria ditadura militar, onde, apesar de todo o cerceamento à defesa, continuou sendo possível, em muitos casos, o recurso ao STF contra os atos de repressão, feitos pelo Executivo. Para Marinho, foi um caminho surpreendentemente eficaz no período, não sendo raros os habeas corpus concedidos pelo STF.
Enio Viterbo resume que o cenário do Brasil atual segue um roteiro parecido com o da ditadura militar, mas atenuado em intensidade e com sinal ideológico trocado: se antes a esquerda era o alvo, agora é a direita. “Não é comparável à ditadura em matéria de eliminação do inimigo”, pontua Viterbo, “mas o que a gente pode traçar de paralelo, se existe um, é a instrumentalização do direito para combater o adversário político.”
Fonte: Por Hugo Freitas Reis, especial para a Gazeta do Povo
É o caso do advogado e professor Rodrigo Marinho, autor da obra 'A história do Brasil pelas suas constituições'. Fazendo referência à expressão “ditadura do Judiciário” (que, para quase metade dos brasileiros, descreve o país), ele prefere falar em “disfunção do Judiciário”. Cita, em particular, os diversos inquéritos concentrados no ministro do STF Alexandre de Moraes.
As ordens de censura expedidas nesses inquéritos renderam ao ministro a qualificação de “ditador” pelo empresário Elon Musk, dono da rede social X (antigo Twitter), uma das destinatárias das ordens.
Para Marinho, o principal fator que contraria o rótulo empregado por Musk é a separação de poderes: Moraes, de quem emanam as ordens, faz parte do Poder Judiciário, de modo que faltaria a ele o “monopólio da força”, que seria, em qualquer caso, necessário para a configuração de um ditador. Para executar suas decisões, por exemplo, Moraes depende do Poder Executivo — no caso, a Polícia Federal.
Marinho contrasta essa situação com a da ditadura militar brasileira, onde, diz, havia um “autogoverno” do Executivo, que tanto ordenava a censura quanto a executava. Assim, descarta a caracterização do Brasil atual com uma “ditadura”, embora faça uma concessão em favor dos que usam a palavra: “Para quem sofre, parece muito.”
A própria ministra Carmen Lúcia, do STF, em sessão do TSE em 2022 sobre a censura de documentário do Brasil Paralelo, fez comparação implícita da medida com as que eram praticadas na ditadura, ao se dizer preocupada com os riscos da medida e alertar: “Não se pode permitir a volta de censura sob qualquer argumento no Brasil.”
Monitoramento de conteúdos
Nos últimos anos, o TSE criou órgãos especiais para “monitorar a circulação de práticas de desinformação”, que têm encaminhado para o ministro Alexandre de Moraes vídeos e outras postagens de criadores de conteúdo na internet. Esse tipo de monitoramento tem resultado, frequentemente, na censura de conteúdos, na proibição de que os criadores voltem a tocar em determinados assuntos vagamente estipulados, ou até mesmo do bloqueio total dos perfis desses indivíduos no território nacional; ações essas realizadas de ofício pelo ministro, sem pedido de órgãos de acusação.
Como exemplo de sua afirmação de que a censura atual pode se parecer com a da ditadura aos olhos de quem a sofre, Marinho compara esses órgãos do TSE a antigos órgãos como o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), que, no regime militar, monitoravam espetáculos e outras produções culturais. O objetivo era detectar conteúdos considerados problemáticos, seja pelo conteúdo político, seja por afrontarem a moral e os bons costumes.
O professor considera que esse tipo de monitoramento seria ilegal da parte de um órgão do Judiciário, porque violaria o princípio da inércia da jurisdição, que impede o Judiciário de agir sem ser provocado.
Censura prévia
Marinho chega a afirmar que, em alguns aspectos específicos, chega a haver maior amplitude, hoje, na atuação das autoridades em comparação com o período militar. Como exemplo, ele aponta para a técnica, frequentemente adotada pelo ministro Moraes, de bloquear perfis em rede social, de modo a impedir qualquer manifestação futura do indivíduo, em vez de censurar conteúdos especificamente infringentes. Marinho explica que esse expediente é conhecido como “censura de meio” e era rejeitado pelo próprio STF na ditadura militar, que não o empregava; por exemplo, afirma Marinho, não se praticava o fechamento de veículos.
O advogado explica, contudo, que o regime praticava outra forma de censura prévia, ausente no Brasil de hoje, que era a interferência interna nas editorias de veículos: agentes do Estado examinavam previamente os conteúdos e vetavam a publicação de alguns deles, ou de partes específicas.
Clandestinidade
O historiador Enio Viterbo, especialista em direito militar e história política do Exército brasileiro, traça paralelos entre os ofícios sigilosos de censura às redes sociais no Brasil, criticados por Musk e revelados pelo Congresso americano, e circulares sigilosas que eram enviadas por agentes do regime militar aos veículos de imprensa, proibindo a veiculação de qualquer conteúdo futuro sobre determinado assunto ou indivíduo.
Para Viterbo, a semelhança reside no fato de que, assim como ocorre com os atuais ofícios de censura, as circulares do tipo não continham fundamentação, as empresas destinatárias eram proibidas de divulgar o seu conteúdo e os eventuais indivíduos afetados (por exemplo, autores cujo livro era proibido de ser mencionado) não tinham qualquer acesso à ordem, aos seus fundamentos ou à informação de quem a tinha expedido, muito menos tinham a possibilidade de se defender.
A censura específica feita dentro dos veículos (empregada, segundo Viterbo, quando as circulares se mostravam insuficientes) também era feita com imposição de sigilo: os veículos eram proibidos de informar o público da ocorrência de censura. Essa proibição explica a prática, tornada célebre, da substituição dos trechos censurados nos jornais por receitas de bolo.
O empresário Elon Musk afirmou, em publicação no X, ter ocorrido prática análoga com a rede social, com suposta exigência de que a censura de perfis, feita por ordem sigilosa, fosse apresentada ao público como tendo sido feita espontaneamente pelo X, e não por ordem judicial. O empresário não esclareceu se estava falando de uma interpretação específica da redação dos ofícios de censura já tornados públicos ou se se referia a comunicação à parte, ainda não conhecida do público.
Cerceamento das possibilidades de defesa
Os especialistas consultados concordam que um aspecto em comum entre o cenário atual do Brasil e a ditadura militar é uma restrição das possibilidades de defesa, no caso de crimes cometidos por indivíduos tachados de “subversivos”, considerados como ameaça à ordem política vigente.
No caso da ditadura militar, esse cerceamento ocorreu diretamente, com a previsão constitucional de que certos atos de repressão política estariam “excluídos de apreciação judicial”, ou seja, não haveria possibilidade de recurso ao Judiciário para reverter os atos.
Além disso, os chamados “crimes contra a segurança nacional” foram retirados da Justiça comum, sendo atribuídos à Justiça Militar. Enio Viterbo considera essa modificação de competência como tendo sido um instrumento para “combater inimigos políticos”, pela quase garantia de uma futura condenação. Por esse motivo, a designação de tribunais especiais para certos crimes (ou mesmo um “tribunal de exceção”, vedado pela Constituição de 1988) é estratégia frequentemente usada por regimes autoritários. Getúlio Vargas, por exemplo, criou um “Tribunal de Segurança Nacional”.
Já no Brasil atual, o mesmo efeito prático tem sido obtido pela aplicação de regras já antigas. O instituto processual da “conexão” (atração de processos para determinado julgador, em razão do tema) tem sido invocado para remeter diretamente ao STF muitos investigados ou réus sem foro natural no tribunal, onde ficam privados do direito de recorrer a qualquer outro órgão judicial, já que se trata do órgão de cúpula.
Neste aspecto, aponta Rodrigo Marinho, a situação dos réus pode ser pior do que a de muitos réus na própria ditadura militar, onde, apesar de todo o cerceamento à defesa, continuou sendo possível, em muitos casos, o recurso ao STF contra os atos de repressão, feitos pelo Executivo. Para Marinho, foi um caminho surpreendentemente eficaz no período, não sendo raros os habeas corpus concedidos pelo STF.
Enio Viterbo resume que o cenário do Brasil atual segue um roteiro parecido com o da ditadura militar, mas atenuado em intensidade e com sinal ideológico trocado: se antes a esquerda era o alvo, agora é a direita. “Não é comparável à ditadura em matéria de eliminação do inimigo”, pontua Viterbo, “mas o que a gente pode traçar de paralelo, se existe um, é a instrumentalização do direito para combater o adversário político.”
Fonte: Por Hugo Freitas Reis, especial para a Gazeta do Povo